Paraconsistência é o estudo de sistemas lógicos com uma negação não explosiva tal que, a partir de um par de fórmulas contraditórias (em relação àquela negação), não derivamos uma trivialização, ao contrário do que seria esperado pela ortodoxia lógica contemporânea.
Texto adaptado de Testa, R. (2023). Paraconsistency. In J. Mattingly (Ed.), The SAGE encyclopedia of theory in science, technology, engineering, and mathematics (Vol. 1, pp. 629-632). SAGE Publications, Inc., https://dx.doi.org/10.4135/9781071872383.n144 (preprint disponível aqui)
A partir de uma perspectiva puramente lógico-formal, o significado da paraconsistência depende da distinção meticulosa entre as noções gerais de contradição e de trivialidade de uma teoria – respectivamente, o fato de que uma dada teoria prova uma proposição e sua negação, e o fato de que uma dada teoria prova qualquer proposição (na linguagem de sua lógica subjacente). Para além de tal análise, vale notar que as técnicas e abordagens lógicas que atendem a tal distinção formal são múltiplas. Além disso, não são apenas as propriedades lógico-matemáticas de tais sistemas que estão abertas ao debate. Na verdade existem diversas questões filosóficas e de fundamentos que valem a pena serem estudadas, incluindo a própria questão sobre a natureza das contradições permitidas pelos paraconsistentistas. Neste pequeno texto abordaremos algumas destas perspectivas distintas sobre a paraconsistência a partir de um breve panorama do desenvolvimento da Lógica Paraconsistente.
Lógica Paraconsistente
De um ponto de vista estrutural, pode-se dizer que a paraconsistência é a propriedade de uma relação de consequência ⊢ na qual o princípio ex contraditione [sequitur] quodlibet (a partir da contradição, [segue] qualquer coisa) não vale em geral; isso é:
A,¬A⊢B nem sempre é o caso (para uma dada negação ¬ e proposições arbitrárias A e B).
Assim, pode-se simplesmente dizer que uma lógica é paraconsistente se e somente se sua relação de consequência não for explosiva.
Algumas outras definições de lógica paraconsistente podem ser encontradas na literatura. No entanto, todas elas podem se mostrar equivalentes a esta se fizermos algumas considerações sobre as propriedades das relações de inferência subjacentes.
Origens
O estudo de sistemas lógicos subjacentes a teorias possivelmente contraditórias surgiu mais ou menos na mesma época que a constituição das escolas logicista e formalista na filosofia da matemática, no final do século XIX e início do século XX.
De fato, já em 1910, Jan Łukasiewicz propôs uma crítica às distintas formulações das visões de Aristóteles sobre a contradição. Seguindo uma mesma linha, no mesmo ano Nicolai A. Vasiliev desenvolveu uma espécie de raciocínio livre das leis do terceiro excluído e da contradição – chamada lógica imaginária em analogia com a geometria imaginária de Nikolai Lobachevsky (uma geometria não euclidiana que visa investigar a independência do postulado das paralelas).
Embora dotando características de uma lógica paraconsistente, ou seja, criticando o princípio da não-contradição, ambas as obras marcariam o nascimento de dois outros tipos de lógicas não-clássicas bem estudadas – notadamente a lógica multivalorada e a lógica dialética, respectivamente.
Outros trabalhos que foram pioneiros no desenvolvimento da lógica paraconsistente também aderem a uma abordagem multivalorada. A lógica do nonsense, introduzida por Sören Halldén em 1949, visava estudar os paradoxos lógicos por meio de matrizes lógicas trivalentes, intimamente relacionadas com a lógica do nonsense introduzida por Dmitrii A. Bochvar em 1938. Uma abordagem análoga foi feita em 1966 por Florencio G. Asenjo em seu Cálculo de Antinomias, que introduz uma estrutura formal para estudar antinomias por meio de tabelas de verdade de Kleene de 3 valores para negação e conjunção, onde o terceiro valor de verdade é distinguido.
O nascimento da Lógica Paraconsistente como uma disciplina
A ascensão contemporânea da lógica paraconsistente iniciou-se com as traduções dos primeiros artigos para o inglês e um crescente aumento de interesse por eles. Alguns avanços que marcaram o surgimento da lógica paraconsistente enquanto disciplina, impulsionando novos resultados, incluem os trabalhos de Stanisław Jaśkowski e Newton da Costa, que desenvolveram de forma independente sistemas abrangentes explicitamente focados em evitar a trivialidade, restringindo o caráter explosivo das contradições, precisamente o característica principal de uma lógica paraconsistente – termo cunhado por Francisco Miró Quesada em carta pessoal a da Costa em 1975, e depois tornado público na Terceira Conferência Latino-Americana de Lógica Matemática em 1976. O termo paraconsistência é formado pelo prefixo para- , significando “além de”, “além”, ou mesmo “semelhante a” ou “quase”; e consistência, significando a propriedade de um sistema que não é trivial ou não contraditório – duas noções classicamente equivalentes cuja separação está no cerne da agenda paraconsistentista.
De acordo com Jaśkowski, existem três condições principais que uma teoria contraditória porém não trivial deve satisfazer:
- Ela deve ser não explosiva;
- Ela deve ser rico o suficiente para permitir inferências práticas;
- Ela deve ter uma justificativa intuitiva.
Essas duas últimas condições, menos formais do que a primeira, capturam o maior desafio para um paraconsistentista – qual seja, a necessidade de mostrar que uma certa noção de consequência lógica está de alguma forma preocupada com situações reais de raciocínio. A motivação de Jaśkowski para propor em 1948 a chamada lógica discussiva foi uma situação enigmática colocada por Jan Łukasiewicz (de quem foi discípulo): qual lógica se aplica na situação em que se deve defender algum juízo A, considerando também sua negação a título argumentativo? A estratégia seguida por Jaśkowski foi evitar a combinação de informações conflitantes, impossibilitando a regra de adjunção, permitindo assim A e ¬A sem implicar a conjunção de ambos (A∧¬A), já que a explosão clássica ainda se mantém na forma de A∧¬A⊢B. Em termos de raciocínio, tal estratégia tem um significado direto: cada agente ainda deve ser individualmente consistente.
Para da Costa, o foco foi o desenvolvimento de sistemas que, por um lado, pudessem ser fortes o suficiente para captar a maior parte da matemática e, por outro lado, contornar alguns dos conhecidos paradoxos que historicamente marcaram os estudos em lógica. A principal intuição de Da Costa nos chamados C-sistemas, definidos em seu artigo de 1963 “On the Theory of Inconsistent Formal Systems”, é que é possível diferenciar sentenças inconsistentes de consistentes ou, em suas próprias palavras, daquelas com um “bom-comportamento” – sendo este um requisito suficiente para garantir o caráter explosivo de uma fórmula dada.
Vários outros trabalhos na literatura sem dúvida contribuíram para o desenvolvimento da lógica paraconsistente como uma disciplina madura, a maioria deles servindo como base formal para programas de pesquisa particulares em torno dos quais escolas distintas de paraconsistência foram organizadas. Uma breve descrição desses trabalhos é dado na próxima seção, de um ponto de vista de suas respectivas abordagens à paraconsistência.
Principais abordagens para a paraconsistência
Preservacionismo
A escola preservacionista da paraconsistência surgiu partir dos primeiros trabalhos de Raymond Jennings e Peter Schotch sobre semântica modal, no início dos anos 1980, focada no desenvolvimento de ferramentas formais e justificativas intuitivas para capturar o raciocínio dos seres humanos diante de dados inconsistentes. Algumas das principais motivações incluem lidar com os conceitos de crença e obrigação, bem como a noção de implicação estrita definida por C. I. Lewis.
Grosso modo (além de detalhes técnicos e questões filosóficas), dada uma coleção inconsistente de sentenças (em uma lógica já definida, geralmente lógica clássica), não se deve tentar raciocinar sobre essa coleção como um todo, mas sim se focar em subconjuntos internamente consistentes de premissas.
Para saber mais:
- Schotch, P., Brown, B. and Jennings, R. eds. (2009). On Preserving: Essays on Preservationism and Paraconsistent Logic. University of Toronto Press.
Lógicas Adaptatativas
Uma lógica é dita adaptativa se ela se adapta às premissas específicas às quais é aplicada. Desenvolvidas a partir do trabalho inicial de Diderik Batens, o raciocínio adaptativo reconhece algumas anormalidades (como são chamados casos especiais das premissas) para desenvolver estratégias formais para lidar com elas: por exemplo, uma anormalidade pode ser uma inconsistência (lógica adaptativa à inconsistência) ou pode ser uma inferência indutiva, e uma estratégia pode ser excluir uma linha de uma prova (marcando-a) ou alterar uma regra de inferência.
Assim, o caráter paraconsistente da anormalidade não é o foco principal. Em vez disso, a ideia intuitiva a ser capturada é que o raciocínio humano pode ser melhor entendido como dotado de muitas relações de consequência dinâmicas, sendo o raciocínio tolerante à inconsistência uma delas.
Para saber mais:
- Batens, Diderik (2001). A general characterization of adaptive logics. Logique Et Analyse 173 (175):45-68.
Lógicas Relevantes
Preocupadas principalmente em evitar os paradoxos da implicação material e estrita, as lógicas relevantes são lógicas subestruturais que exigem uma conexão significativa entre as premissas e a conclusão de um argumento. Essa estratégia induz um caráter paraconsistente nas deduções resultantes, uma vez que A e ¬A, como premissas, não têm necessariamente uma conexão significativa com uma conclusão B arbitrária. As Lógicas Relevantes evoluiram na década de 1960 a partir de alguns trabalhos iniciais de Alan Anderson e Nuel Belnap, estendendo algumas ideias originais de Wilhelm Ackermann, Alonzo Church e outros.
Para saber mais:
- Anderson, A. R. and Belnap, N. D., Jr. (1975). Entailment: The Logic of Relevance and Necessity. Princeton University Press, vol. I.
- Mares, E. D. (2004). Relevant Logic: A Philosophical Interpretation. Cambridge University Press.
Dialeteísmo
Dialetheia é um neologismo formado pelo prefixo grego di[a]-, que significa “em direções opostas ou diferentes”; e aletheia, uma palavra para “verdade”. Assim, podemos dizer que uma dialetheia é uma sentença que é verdadeira e falsa. Desenvolvido a partir dos trabalhos originais de Richard Routley e Graham Priest na década de 1970, motivados principalmente pelo avanço de ferramentas para lidar com o paradoxo do mentiroso e antinomias na Teorias de Conjuntos, o dialeteísmo é a visão ontológica de que existem dialeteias; isto é, a visão de que algumas contradições são verdadeiras (contradições de fato). Portanto, como esperado, a lógica preferida para um dialeteísta deve ser paraconsistente, embora nem todos os paraconsistentistas sejam compelidos a ser dialeteístas.
Para saber mais:
- Priest, Graham (2006). In Contradiction: A Study of the Transconsistent. Oxford University Press. Second edition.
- Priest, Graham (2006). Doubt Truth to be a Liar. Oxford University Press.
Lógicas de Inconsistência Formal (LFIs)
Uma ideia-chave nas LFIs é que há situações em que as contradições podem, pelo menos temporariamente, ser admissíveis se seu comportamento puder ser controlado de alguma forma, tal como originalmente sugerido por da Costa. Generalizando e ampliando ainda mais os avanços deste último, as LFIs (como seriam batizadas por Walter Carnielli e João Marcos no início dos anos 2000) são uma família de lógicas que podem codificar a [in]consistência dentro de sua linguagem objeto, permitindo uma separação explícita entre a contradição da inconsistência, a inconsistência da trivialidade, a consistência da não-contradição e a não trivialidade da consistência. Tendo sido consideravelmente estudada e ampliada por diversos colaboradores, os avanços mais recentes são apresentados por Carnielli e Coniglio 2016.
Para saber mais:
- W. A. Carnielli and J. Marcos. A taxonomy of C- systems. In Paraconsistency: the Logical Way to the Inconsistent, Lecture Notes in Pure and Applied Mathematics, Vol. 228, pp. 01–94, 2002.
- W. A. Carnielli, M. E. Coniglio and J. Marcos. Logics of Formal Inconsistency. In Handbook of Philosophical Logic, vol. 14, pp. 15–107. Eds.: D. Gabbay; F. Guenthner. Springer, 2007.
- da Costa, Newton C. A. (1974). “On the Theory of Inconsistent Formal Systems.” Notre Dame Journal of Formal Logic 15, pp. 497–510.
- da Costa, Newton C. A. (2000). Paraconsistent Mathematics. In Batens et al. (2000), pp. 165–180.
- da Costa, Newton C. A., Krause, Décio & Bueno, Otávio (2007). “Paraconsistent Logics and Paraconsistency.” In Jacquette, D. ed. Philosophy of Logic (Handbook of the Philosophy of Science), North-Holland, pp. 791–912.
Outras abordagens
Há muitas maneiras pelas quais uma lógica pode ser contraditória mas não trivial. A lógica discussiva de Jaśkowski, por exemplo, não apenas seguiu uma abordagem não-adjuntivista, mas também dotou um caráter modal – na verdade, sendo um fragmento da conhecida lógica modal S5. Outro programa significativo é o multivalorado, para o qual o primeiro sistema compreensivo contemporâneo com um explícito caráter paraconsistentista é o Cálculo de Antinomias de Asenjo, a mesma estratégia seguida pela Lógica do Paradoxo de Priest, avançada nos primeiros trabalhos sobre o dialeteísmo.
O fato é que não há uma forma única de dividir os avanços da literatura em abordagens específicas, pois elas se cruzam e se complementam. A paraconsistência, como uma propriedade de sistemas lógicos, é definida negativamente – ela engloba todo sistema no qual ex contraditione quodlibet não vale em geral.
A divisão desses sistemas em distintas escolas de paraconsistência, destacando propriedades e motivações particulares, pode assim ser entendida apenas como uma ferramenta pedagógica para introduzir a rica e frutífera pluralidade de lógicas paraconsistentes.
Para além do debate lógico-filosófico, o estudo da paraconsistência na perspectiva dos modelos finitos da aritmética, bem como as aplicações da lógica paraconsistente em algumas áreas computacionais, têm proporcionado uma nova dimensão aos resultados obtidos. O fato é que desde os primeiros trabalhos na área, a paraconsistência tem se mostrado um campo de pesquisa notavelmente fértil, fornecendo novas formas de lidar com cenários contraditórios, mas não triviais, incluindo o estudo de Teorias Inconsistentes, Paradoxos, Dialética, Ontologia, Revisão de Crenças e muito mais.