Reflorestar o Imaginário: o “Futuro Ancestral” de Ailton Krenak

Após o final do meu pós-doutorado no CLE-Unicamp, no início de 2019, comecei a me aproximar da área da produção cultural, acompanhando o trabalho da minha esposa, Tainan. Foi uma necessidade prática, sobretudo durante os anos difíceis da pandemia, quando o mundo acadêmico parou e o cenário de novas posições e oportunidades de pesquisa ficou suspenso por tempo indeterminado.

No início, atuei nos bastidores, como apoio técnico em gravações e produções audiovisuais — o que exigiu de mim o desenvolvimento de novas habilidades. Mas, com o tempo, percebi que poderia aplicar minha experiência acadêmica de outra forma, participando da elaboração de roteiros, projetos culturais e propostas de atividades que articulavam educação, comunicação e cultura.

Na prática, essa experiência me colocou diante de uma questão que até então me parecia periférica na vida universitária: como traduzir o pensamento filosófico — ou qualquer forma de conhecimento — para diferentes públicos, em diferentes linguagens? Aos poucos, fui entendendo que essa ponte entre universidade e sociedade é o que realmente dá sentido à ideia de extensão universitária. Foi esse movimento que me levou, por exemplo, a organizar o TEDxJundiaí, buscando ampliar o acesso a ideias relevantes por meio de formatos mais acessíveis — mas essa é uma outra história.

Mesmo agora, com meu foco voltado novamente à pesquisa e ao ensino, continuo com um pé na produção cultural. Entendo que essas áreas não se excluem — ao contrário, se fortalecem mutuamente quando bem integradas. E foi justamente nesse contexto que, recentemente, participei da gravação da entrevista feita por Tainan com Ailton Krenak, para o programa Francamente.

A entrevista não foi apenas mais uma pauta. Foi um encontro com uma figura central do pensamento contemporâneo brasileiro. Krenak ficou conhecido nacionalmente nos anos 1980, quando, durante a Assembleia Constituinte de 1987, subiu à tribuna do Congresso Nacional e, enquanto discursava, pintou o rosto com tinta preta de jenipapo — um protesto contra o desmonte dos direitos dos povos indígenas no novo texto constitucional.

O discurso de Krenak na Assembleia Constituinte marcou a necessidade de defesa dos povos originários.

O gesto impactante foi também um desdobramento de uma articulação política mais ampla. Krenak foi um dos fundadores da União dos Povos Indígenas e da Aliança dos Povos da Floresta (que uniu indígenas, seringueiros e ribeirinhos em defesa dos territórios e dos modos de vida tradicionais). Essa aliança teve papel decisivo na mobilização social que pressionou a Constituinte e resultou na inclusão dos artigos 231 e 232 da Constituição de 1988, que reconhecem os direitos originários dos povos indígenas sobre suas terras, línguas, culturas e modos de vida.

Lembro de ver essa imagem nos livros de história da escola, e de como esse capítulo da Constituição era destacado nos livros didáticos dos anos 90 — afinal, estávamos na primeira década de redemocratização do país. Mas, até recentemente, eu não tinha lido suas obras ou acompanhado de perto seu pensamento. Sim, eu sei, eu já deveria ter tido contato com suas obras — afinal, ele se tornou o primeiro indígena eleito imortal da Academia Brasileira de Letras.

Agência Gov | Via MinC

Quando soube da entrevista, prontamente comprei um de seus livros — quando minha esposa me mostrou um exemplar seu, todo rabiscado, cheio de anotações, me perguntou: “Você conhece, né?”. E eu, para disfarçar minha ignorância, apenas discorri vagamente sobre minhas lembranças das aulas de história.

O livro que escolhi foi Futuro Ancestral — que ele gentilmente autografou —, mas acabei lendo só depois do encontro. E foi melhor assim: primeiro o ouvi falar, ao vivo, com tom poético mas também com firmeza — características que também estão no livro.

Durante a entrevista, uma frase de Krenak me marcou especialmente: “precisamos reflorestar o imaginário”. Mais tarde, assistindo à palestra que ele deu no mesmo dia, a ideia se desdobrou em outros conceitos, como o de “monocultura do pensamento”.

Reflorestar o quê?

A expressão “reflorestar o imaginário” tem apelo poético, mas o conteúdo é político. Krenak propõe que a crise ambiental não é apenas uma crise de recursos naturais ou de políticas públicas. É uma crise de imaginação. O “imaginário” é o conjunto de símbolos, narrativas e valores que moldam a forma como entendemos o mundo. E esse imaginário tem sido dominado por uma lógica única, pautada pela produtividade, pelo consumo e pela aceleração.

Essa lógica — que ele chama de “monocultura do pensamento” — se parece muito com a monocultura agrícola: extrai, exaure e empobrece. Do mesmo modo que a monocultura destrói a biodiversidade do solo, a monocultura do pensamento sufoca formas alternativas de viver, pensar e se relacionar com o tempo e com o planeta.

No livro Futuro Ancestral, Krenak amplia essa crítica e sugere caminhos. Ele recupera o valor da memória, da oralidade, do pertencimento ao território. Argumenta que os povos indígenas — ao contrário do que sugerem certos discursos integracionistas — nunca deixaram de resistir às imposições do progresso capitalista. Resistiram mantendo modos de vida ancorados em outra relação com a Terra. Krenak não idealiza um retorno ao passado, mas propõe a escuta de saberes que, por muito tempo, foram silenciados ou desqualificados. Por isso o “futuro” precisa ser ancestral.

Esse tipo de reflexão muitas vezes escapa às classificações tradicionais do campo filosófico, mas está cada vez mais presente em debates contemporâneos sobre ética, meio ambiente, tecnologia e política. A filosofia de Krenak não é sistemática, mas é consistente. Não parte da abstração, mas da experiência. E talvez por isso produza impacto: ela convoca o pensamento a sair da torre de marfim e se reconectar com a vida.

Recomendo a entrevista não só pela importância do convidado, mas também pela oportunidade de ouvir — com atenção e calma — uma fala que nos desafia a repensar o que estamos fazendo com o mundo, e com a nossa própria capacidade de imaginar o futuro. Aproveito aqui para parabenizar minha esposa pela competência e repertório!

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