“Revisão de Crenças” e o papel da Lógica na Filosofia

A Lógica sempre desempenhou um papel central na Filosofia, servindo como uma ferramenta crucial para a análise, avaliação e construção de argumentos.

Na edição especial da revista Principia, organizada pelo meu colega David Suárez-Rivero, diversos artigos colaboram com a discussão sobre a utilidade da lógica no fazer filosófico, apresentando argumentos históricos e contemporâneos que reforçam sua importância.

O volume especial é estruturado em quatro seções. Na seção I, Argumentos Filosóficos, Formalização e Provas, são apresentadas formalizações de cinco argumentos clássicos na filosofia, fornecendo suas provas lógicas e discutindo algumas de suas consequências filosóficas. Na seção II, Alguns Usos de Dispositivos Lógicos em Debates Filosóficos, são discutidas algumas aplicações contemporâneas. Na seção III, Discutindo Dispositivos Lógicos para Usos Filosóficos, o foco é apresentar algumas limitações aparentes da Lógica, contribuindo para a avaliação sobre a confiabilidade da Lógica como uma ferramenta para se fazer Filosofia. Finalmente, na seção IV, Outros Recursos Lógicos ao Fazer Filosofia, é apresentada uma discussão sobre distintas formalizações que salientam a utilidade das variadas facetas da lógica em diferentes discursos.

A Revisão de Crenças: Um Exemplo Prático

Para ilustrar a aplicação da lógica na filosofia, convido você a explorar meu artigo “Belief Revision in a Nutshell“, publicado na referida revista – fruto da apresentação homônima no Workshop sobre o tema que organizei no UNILOG 2022 (em Creta, na Grécia).

A Revisão de Crenças é uma área interdisciplinar de pesquisa que utiliza a lógica para modelar como agentes racionais mudam suas crenças em resposta a novas informações.

Para ilustrar, considere o seguinte conjunto de frases que representam crenças (apresentado por Gärdenfors, 1992): Todos os cisnes europeus são brancos; o pássaro preso na armadilha é um cisne; o pássaro preso na armadilha vem da Suécia; e a Suécia é parte da Europa. Deste conjunto, pode-se deduzir que o pássaro preso na armadilha é branco.

Mas suponha que o pássaro capturado seja preto. Se essa nova informação for simplesmente adicionada ao conjunto anterior, ele se tornará inconsistente. Se pretendemos que o novo estado de crença permaneça consistente, como devemos proceder? As antigas crenças devem ser preservadas ignorando a nova informação? Ou deve-se adicionar a nova informação, removendo algumas das crenças contidas no conjunto original? Nesse caso, todas as crenças devem ser retraídas, ou apenas algumas delas? Quais?

“Revisão de Crenças: o Cisne Negro”, do autor.

Critérios de Racionalidade

O principal argumento defendido pelo trio AGM (Alchourrón, Gärdenfors e Makinson, 1985) é que existem certos princípios básicos no metanível das teorias epistemológicas que devem ser satisfeitos – os chamados critérios de racionalidade. Por exemplo, no exemplo anterior, o leitor deve concordar que não parece racional retrair o fato de que a Suécia é parte da Europa, em vez de retratair, por exemplo, a crença de que todos os cisnes europeus são brancos. Isso significa que há algum tipo de preferência na escolha do que acreditar (e, consequentemente, na escolha do que se deve retrair).

Além disso, outro critério tacitamente presente nesse exemplo é a preservação da consistência. De fato, a preservação da consistência e a relação de preferência são dois dos critérios mais usuais, juntamente com a economia informacional (ou minimalidade, que afirma que o máximo possível de informações anteriores deve ser retido), o fechamento lógico (o resultado de uma operação de mudança de crença é um conjunto logicamente fechado, assim como o original), a irrelevância da sintaxe (o resultado de uma mudança não depende da representação formal das crenças) e a primazia da nova informação, entre outros.

“Sphere-based revision of K by p”, in Hansson, Sven Ove, Logic of Belief Revision, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2022 Edition), Edward N. Zalta (ed.)

Modelo AGM

No modelo AGM, as crenças são expressas em uma linguagem L, fechada sob as conectivas usuais da lógica proposicional. Seja Cn um operador de consequência em L que satisfaça as propriedades Tarskianas usuais, e Cn(X) sejam todas as consequências lógicas de um conjunto X de sentenças. Um conjunto de crenças que representa o estado de crença de um agente epistêmico é um conjunto de sentenças logicamente fechado, tal que K = Cn(K).

Postulados Básicos para Revisão

Se uma nova informação não contradiz K, ela pode ser diretamente incorporada pelo agente – o que é considerado uma expansão simples, definida teoricamente como K+𝛼 = Cn(K∪{𝛼}). No entanto, na maioria das situações (como no exemplo mencionado) uma operação mais complexa é necessária. Uma revisão de K por uma sentença que representa crença 𝛼 (K⁎𝛼) pode ser formalmente definida pelos seguintes postulados básicos:

(⁎1) K⁎𝛼 = Cn(K⁎𝛼) (Fecho)
(⁎2) 𝛼 ∊ K⁎𝛼 (Sucesso)
(⁎3) K⁎𝛼 ⊆ (K+𝛼) (Inclusão)
(⁎4) Se ¬𝛼 ∉ K, então K+𝛼 ⊆ K⁎𝛼 (Vacuidade)
(⁎5) Se 𝛼 é consistente, então K⁎𝛼 é consistente (Consistência)
(⁎6) Se 𝛼↔𝛽, então K⁎𝛼 = K⁎𝛽 (Irrelevância da Sintaxe)

Como esperado, esses postulados capturam formalmente os princípios de racionalidade previamente citados na linguagem natural. (⁎1) assegura que o resultado de uma revisão é sempre um conjunto de crenças, enquanto (⁎2) assegura que a nova informação está no novo estado de crença. (⁎3) e (⁎4) são reflexos da economia informacional. (⁎5) expressa a preservação da consistência. (⁎6) é uma formalização do critério de irrelevância da sintaxe. Vale mencionar que há várias caracterizações axiomáticas alternativas de revisão, algumas delas equivalentes ou até suplementares a esses postulados básicos – todas essas diferentes caracterizações de revisão podem ser encontradas nas referências.

Modelos Alternativos e Caracterizações Equivalentes

Desde a publicação do modelo AGM em 1985, suas principais construções e conceitos foram ponto de partida para ramificações significativas e críticas, incluindo a elaboração de modelos alternativos que foram propostos para estender ou substituir o paradigma AGM. O fato é que a introdução de modelos formais de mudança de crença abriu um novo campo de reflexão filosófica, juntamente com discussões sobre a própria natureza dos estados epistêmicos e a racionalidade subjacente de suas dinâmicas. Além disso, lançou nova luz sobre questões clássicas, como o uso das ferramentas e métodos formais de mudança de crença para uma série de investigações na filosofia da ciência.

A área se mostrou útil em vários campos distintos, incluindo Inteligência Artificial, principalmente no campo da Representação e Raciocínio de Conhecimento, e muitas outras disciplinas.

Referências

Alchourrón, Carlos E.,, Peter Gärdenfors, and David Makinson. 1985. “On the logic of theory change: Partial meet contraction and revision functions”. Journal of Symbolic Logic 50 (2):510-530.

Fermé, Eduardo, and Sven Ove Hansson. 2018. Belief Change: Introduction and Overview. Springer Verlag.

Gärdenfors, Peter. 1992. “Belief revision: An introduction”. In: P. Gärdenfors (ed.) Belief Revision, no. 29 in Cambridge Tracts in Theoretical Computer Science, pp. 1–28. Cambridge University Press.

Testa, Rafael R. 2024. “Belief Revision in a Nutshell”. Principia: an international journal of epistemology. Vol. 28 No. 1: Special Issue: What can we do in Philosophy using Logic?

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